quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

A VIRTUALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS


                                                             Imagem criada por IA


No contexto da sociedade pós-digital, a integração entre as relações humanas e as tecnologias digitais desafia noções tradicionais de identidade, autenticidade e relações sociais. A sociedade pós-digital, caracterizada pela fusão crescente entre o mundo físico e o digital, traz consigo uma série de desafios e oportunidades. À medida que as tecnologias digitais se entrelaçam com as interações humanas, conceitos fundamentais, como o de descobertas, tornam-se objetos de reflexão e reconfiguração.

A era pós-digital trouxe transformações significativas nas nossas relações com a verdade e a autenticidade.  Um exemplo paradigmático dessa transformação é a criação de representações digitais, como o uso da tecnologia de deep fake no Museu Dalí, na Flórida, onde uma versão virtual de Salvador Dalí interage com os visitantes. Essa tecnologia permite recriar experiências interativas, como o "Dalí digital", uma instalação que faz "renascer" o pintor através de uma representação holográfica. Este caso ilustra não só o potencial criativo da tecnologia, mas também como o mundo digital, ao criar experiências novas e muitas vezes imersivas nos leva a questionar o que é real e o que é simulado, abordando  complexidades filosóficas e éticas inerentes ao mundo digital.

Neste contexto, pretende-se explorar a autenticidade na era digital, abordando três dimensões principais: identidade, informação e ética. Parte-se do conceito de simulacro de Jean Baudrillard e das ideias de Walter Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica para refletir sobre os desafios e oportunidades do mundo digital.


                                                  O "Eu" na Era Pós-Digital

· Identidade e Representação

Nas redes sociais, os indivíduos criam identidades cuidadosamente elaboradas, que nem sempre refletem a realidade. Erving Goffman descreveu este fenómeno como "máscaras sociais", desempenhadas para diferentes audiências. No contexto digital, estas máscaras são amplificadas, permitindo aos utilizadores explorar facetas de si mesmos ou criar identidades fictícias. 

No entanto, este processo de construção de identidade digital é altamente influenciado pelas dinâmicas específicas das redes sociais. A validação social desempenha um papel central, uma vez que os sistemas de métricas, como "likes" e comentários, incentivam os usuários a criar e compartilhar conteúdos que gerem maior facilidade e envolvimento. Este fenómeno pode resultar em identidades cuidadosamente moldadas para atender às expetativas sociais ou tendências de plataforma, muitas vezes à custa de danos. Além disso, as redes sociais facilitam a fragmentação da identidade: cada plataforma digital tende a fortalecer diferentes facetas de uma pessoa.

Outro aspeto relevante é a influência dos algoritmos. As redes sociais personalizam os conteúdos com base no histórico de interações, moldando não só o que o utilizador consome, mas também como apresenta a si mesmo. Este ciclo algorítmico pode fortalecer estereótipos, visualizar perceções e limitar a diversidade de representações.

Finalmente, a dissociação entre a identidade física e a identidade digital introduz novas possibilidades e desafios. Por um lado, permite maior liberdade de expressão e experimentação com diferentes aspetos da personalidade. Por outro lado, pode levar a uma desconexão entre a vida online e a vida offline, gerando tensões emocionais ou pressões sociais para manter uma identidade idealizada.

As redes sociais, assim, não apenas refletem, mas também se reconfiguram como dinâmicas de identidade e representação, criando um ambiente onde tradições, performance e idealização coexistem de forma complexa.

· Simulações e Realidade

Jean Baudrillard argumenta que as simulações podem ultrapassar a realidade, criando um novo mundo hiper-real. Na era digital, a identidade não é apenas representada, mas muitas vezes recriada. A identidade digital, ao invés de ser uma extensão da identidade física, torna-se uma construção própria, fragmentada e muitas vezes idealizada.

Essa privacidade da identidade digital pode ser altamente seletiva, sendo moldada de acordo com as normas sociais e as expectativas das plataformas. As redes sociais, por exemplo, permitem que os indivíduos apresentem apenas os aspetos mais interessantes ou desejáveis das suas vidas, resultando em uma versão muitas vezes distorcida da realidade. Esse processo não apenas altera a perceção de quem somos, mas também como os outros nos percebem.

A performance constante nas redes sociais cria uma separação entre a “identidade real” e a “identidade virtual”, levando à criação de uma hiper-realidade onde as representações digitais, muitas vezes idealizadas, ganham mais significado do que os próprios indivíduos. Essa desconexão pode gerar uma pressão para manter uma imagem perfeita, alimentando a busca constante por validação e reconhecimento, em detrimento dos prejuízos.


Autenticidade e Simulação

· Reprodutibilidade e Perceção

Walter Benjamin sugeriu que a reprodutibilidade técnica elimina a "aura" da singularidade, deslocando a autenticidade para a perceção coletiva. No mundo digital, a autenticidade deixa de estar ligada à origem e passa a depender da experiência e impacto na rede.

 A capacidade de replicar infinitamente uma imagem, um vídeo ou qualquer conteúdo digital faz com que o valor da obra ou da representação não resida mais na sua originalidade, mas na sua circulação, visibilidade e no envolvimento gerado.

Esta mudança tem implicações significativas na forma como percebemos as consequências. No mundo digital, um conteúdo obtido não é pela sua criação ou origem, mas pela forma como é interpretado, compartilhado e validado pelas audiências. A "aura", segundo Benjamin, está relacionada com a singularidade e a exclusividade de uma obra, algo que se perde na técnica de reprodução. Nas plataformas digitais, a plataforma é construída pela interação social, ou seja, quantos seguidores, partilhas, comentários ou likes um conteúdo recebe. A percepção de valor e veracidade está, assim, cada vez mais ligada à sua capacidade de ser validada coletivamente, seja por algoritmos ou por consensos formados entre os utilizadores.

Além disso, a cultura digital gera um ciclo em que as desvantagens estão em constante construção e desconstrução. Cada interação, cada escolha e cada comentário proposto para a redefinição do que é pensado e autêntico, frequentemente afasta-se da realidade e transforma a perceção coletiva numa realidade construída.  

· O Caso do "Dalí digital"

O "Dalí digital" exemplifica esta transição. Não é uma reprodução fiel do pintor, mas uma experiência interativa que encapsula a essência do artista. Esta recriação desafia as noções de verdade e autenticidade, propondo que, no mundo digital, a interação e a perceção são tão ou mais importantes do que a realidade histórica. A recriação de Dalí ilustra a ambiguidade da identidade digital. Embora seja fascinante, este "Dalí" não é apenas um eco do artista; é uma nova construção que funde memórias, tecnologias e perceções, levantando questões sobre a autenticidade no espaço virtual.

 

A Informação no Contexto Digital

· Desafios da autenticidade da informação

Num mundo onde as fake news se propagam rapidamente, a autenticidade da informação é constantemente questionada. Estudos do MIT (Massachusetts Institute of Technology) mostram que conteúdos falsos espalham-se mais depressa que os verdadeiros, agravando a dificuldade de distinguir entre o real e o fabricado. Tecnologias como os deepfakes elevam este problema, manipulando não apenas palavras, mas também imagens e sons.

A transmissão da informação no contexto digital é um tema crítico no cenário atual, onde a facilidade de propagação e a acessibilidade imediata a conteúdos podem ser tanto benéficos quanto prejudiciais. A velocidade com que as informações circulam nas plataformas sociais, muitas vezes sem seleção prévia, torna ainda mais difícil distinguir entre o que é verdadeiro e o que é manipulado.

Além dos desafios representados pelas fake news e pelos deepfakes, é importante considerar o papel dos algoritmos de recomendação, que personalizam o conteúdo com base no comportamento dos utilizadores. Esses algoritmos podem criar bolhas informativas, onde as pessoas são expostas apenas a pontos de vista semelhantes aos seus, reforçando preconceitos e distorcendo a perceção da realidade. Isso limita a exposição a múltiplas fontes de informação e amplia a polarização.

·  Ferramentas para validação 

Outro aspecto relevante são as ferramentas de verificação, como os fact-checkers , que têm um papel essencial no combate à desinformação. No entanto, a confiança nessas fontes também é um ponto de debate, dado que a transparência e imparcialidade dessas plataformas precisam ser avaliadas constantemente. Além disso, as plataformas sociais têm enfrentado críticas por não atuarem de forma eficaz no controle do fluxo de desinformação, embora existam algumas iniciativas implementadas no sentido de mitigar o impacto negativo das notícias falsas.

Além dos pontos mencionados, é importante destacar o impacto das informações manipuladas nas esferas políticas e sociais, que podem ser exploradas de maneira estratégica para influenciar a opinião pública, desestabilizar processos democráticos e até mesmo gerar conflitos sociais. Em períodos eleitorais, por exemplo, as campanhas de desinformação podem alterar os resultados, como demonstrado em diversos escândalos internacionais (como o caso da Cambridge Analytica).

Outro fator a ser considerado é a responsabilidade das plataformas digitais, que muitas vezes são vistas como responsáveis por permitir a disseminação de conteúdo nocivo. No entanto, a questão da liberdade de expressão entra em cena, criando um dilema entre a necessidade de proteger o público da desinformação e a preservação do direito de livre manifestação.

Nesse contexto, surgem discussões sobre a regulação das plataformas digitais: até que ponto os governos devem intervir para controlar o conteúdo compartilhado nas redes sociais sem comprometer a liberdade de expressão? A resposta a esta questão ainda é incerta e variada em diferentes países, com algumas nações adotando leis rigorosas de regulação e outras sendo mais flexíveis.

Por fim, é essencial o papel da educação midiática para capacitar os indivíduos a discernirem de maneira crítica as informações que recebem. Ensinar habilidades de verificação, análise crítica e fontes confiáveis deve ser parte fundamental do currículo educacional, de modo a criar uma sociedade mais preparada para lidar com os desafios da desinformação no mundo digital.

 

Ética e Responsabilidade Tecnológica

· Consequências sociais e individuais

A ética e a responsabilidade tecnológica são essenciais para lidar com os impactos das novas tecnologias. Casos como o da jornalista Rana Ayyub , vítima de um deepfake , demonstram os danos que uma manipulação digital pode causar à identidade das pessoas. Medidas preventivas, como a educação mediática em escolas e universidades, são permitidas para capacitar as pessoas a identificar conteúdos falsificados e agir de forma crítica. No plano social, o uso indevido dessas tecnologias mina a crença no ambiente digital, criando uma crise de confiança que dificulta a distinção entre factos e mentiras, prejudicando a democracia. Uma regulamentação de ferramentas como os deepfakes pode ajudar a evitar o aumento de discursos de ódio,  polarização política e violência, garantindo maior estabilidade social.

As empresas de tecnologia devem implementar ferramentas de verificação de conteúdo mais eficazes e ser transparentes sobre os algoritmos, que muitas vezes priorizam conteúdos sensacionalistas. Além disso, devem comprometer-se a prevenir a propagação de deepfakes e outras manipulações digitais.

Os governos têm a responsabilidade de criar leis claras para combater o uso indevido de tecnologias de manipulação digital, garantindo que os responsáveis sejam punidos e que as vítimas tenham acesso a soluções legais.

Com essas medidas, é possível mitigar os impactos negativos da manipulação digital, promover o uso ético e responsável da tecnologia e proteger tanto as identidades individuais quanto o bem-estar social .

·  Responsabilidade coletiva

A responsabilidade coletiva na era digital envolve uma atuação conjunta de empresas tecnológicas, governos e cidadãos. As empresas de tecnologia têm a responsabilidade de criar e implementar sistemas de segurança robustos e de garantir que suas plataformas sejam usadas de maneira ética e transparente. Devem também investir em tecnologias de deteção e combate à desinformação, além de garantir que os seus algoritmos não promovam conteúdos competitivos.

Os governos precisam criar legislações claras que acompanhem o ritmo da inovação, regulamentando práticas como o uso indevido de dados pessoais, manipulação de informações e a disseminação de conteúdos comerciais. Além disso, devem trabalhar de forma colaborativa com as empresas para garantir que as leis sejam eficazes e que a privacidade e os direitos individuais sejam protegidos.

Já os utilizadores devem ser incentivados a adotar uma postura crítica e responsável no consumo e compartilhamento de informações. Isso inclui estar mais atento ao impacto de suas ações online, promover a educação digital e apoiar práticas éticas.

Uma cultura de ética digital deve ser promovida de forma integral, envolvendo desde os criadores de tecnologias até os utlizadores finais, com o objetivo de criar um ambiente digital mais seguro, transparente e justo para todos.


Considerações 

Com base em tudo o que foi exposto, as considerações que se seguem surgem como uma síntese que emerge da refexão sobre as tecnologias digitais e seus problemas  éticos:

 A era pós-digital desafia-nos a reavaliar os conceitos de identidade, autenticidade e verdade. A recriação de Salvador Dalí através de tecnologias digitais simboliza tanto o potencial criativo como os riscos éticos destas ferramentas.

 A autenticidade, antes ancorada na origem e na singularidade, tornou-se uma construção dinâmica, moldada pela perceção e pela interação. Para garantir que a tecnologia enriqueça as nossas experiências sem comprometer os valores fundamentais, é essencial uma abordagem ética, educada e responsável.

 Além disso, é importante considerar que as tecnologias digitais, apesar de expandirem as possibilidades criativas, também podem criar realidades falsas que confundem a linha entre o verdadeiro e o falso. A transparência na utilização de tais ferramentas é fundamental para evitar manipulações e garantir que as representações digitais não comprometam a confiança nas informações que consumimos.

 A responsabilidade coletiva de criadores, empresas e utilizadores torna-se, portanto, crucial para garantir que a inovação tecnológica seja direcionada de forma ética e benéfica para todos.

 

   Bibliografia

 • Baudrillard, J. (1991). Simulacros e Simulações. Relógio d´Água

 • Benjamim, W. (1992). A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Relógio d`Água

 • Goffman, Erving (1959). A Apresentação do Eu na Vida Cotidiana. Doubleday

 • Lagoa, S. (2018). Identidade e Representação Digital. Revista de Estudos Digitais

 • Dalí Lives – Art Meets Artificial Intelligence. (2019, março 11). [Gravação de vídeo].https://www.youtube.com/watch?v=mPtcU9VmIIE&t=1s&ab_channel=TheDal%C3%ADMuseum

 

 

 

 



1 comentário:

  1. A colega explora a autenticidade na era digital, analisando como as tecnologias, especialmente as redes sociais e o deepfake, impactam a identidade, a informação e a ética. Examinam as noções de simulacro e realidade, a reprodutibilidade técnica e o seu efeito na perceção da autenticidade, assim como os desafios colocados pela desinformação. Por fim, problematiza a responsabilidade coletiva das empresas tecnológicas, governos e utilizadores para promover um uso ético da tecnologia e combater a manipulação digital. Além disso, menciona figuras como Baudrillard, Benjamin e Goffman para fundamentar a análise.
    Atentamente,
    Luz

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